quarta-feira, 5 de novembro de 2014

A arte de esquecer!

Pôr os sentimentos de lado é permitir que a vida prossiga.

O livro mais triste que conheço sobre o amor se chama O legado de Eszter, do húngaro Sándor Márai. Quando o li, tive a sensação de que minha vida, como a da personagem, seria destruída pela esperança de um romance irrecuperável. Eszter espera pela visita do grande amor do passado, que a salvará de uma existência de solidão e vergonha. Eu esperava pelo retorno de uma mulher que nunca voltou.

Lembro o livro, o período e a dor como partes de um mesmo corpo. A prosa límpida e hipnótica de Márai ligava a vida da mulher no início do século XX à minha, que se desenrolava às vésperas do século XXI. As personagens e as palavras dele deram àquele momento as cores de uma profunda melancolia, mas a tingiram, ao mesmo tempo, de uma estranha lucidez. Lembro-me de pensar, de forma um pouco dramática, que afundava de olhos abertos.

Fui procurar ontem o livro na minha estante e descobri que não está mais lá. Sumiu, assim como o afeto inextinguível que eu sentia. Alguém levou meu livro embora, ou se esqueceu de devolvê-lo. O tempo dispôs silenciosamente da minha paixão. Diante disso, me ocorre que esquecer é uma benção – ou uma arte, a aprimorar meticulosamente ao longo da vida. Pôr pessoas e sentimentos de lado é permitir que a existência prossiga.

Não há nada que eu gostaria tanto de ensinar aos outros e a mim mesmo como a capacidade de deixar sentimentos para trás. Olho ao redor e vejo gente encalhada como barcos na areia. Homens e mulheres. Esperam pelo passado, embora a vida se espraie em possibilidades à volta delas. Precisam de tempo para se recuperar, mas carecem de luz. Necessitam entender que a dor – embora inevitável – não constitui uma virtude, nem mesmo um caminho. Tem apenas ser superada, para que o futuro aconteça.

A Eszter de Márai vive encarcerada no universo moral e jurídico legado a ela pelo século XIX. Mulher, seu destino era ligado às decisões de um homem, Lajos. Ela espera porque não tem meios de agir. Ser corrompida pela esperança e pelo perdão é o que lhe resta. Sua posição na sociedade consiste numa espécie inexorável de destino.

Não há, no mundo em que vivemos, uma jaula social correspondente aessa. Fazemos nossas escolhas no interior de amplos limites existenciais. Somos inteiramente responsáveis por nossos sentimentos, ou ao menos pelas atitudes que tomamos diante deles. Se decidimos ficar e esperar, se permitimos nos tornar o objeto passivo das manipulações ou indecisões alheias, não há um Lajos a quem acusar.

Ainda assim, construímos prisões mentais à nossa volta. Prisioneiros de uma noção ridícula de amor do século XIX, quando ainda não havia liberdade pessoal, imaginamos que o amor é único e eterno – e que perdê-lo equivale a perder a vida, como um trem que passasse uma única vez numa estação deserta. Nada mais longe da realidade. Nossa vida se abre desde o início em múltiplas possibilidades e se desenvolve em companhia de inúmeras pessoas. Alguns terão papéis importantes e duradouros. Outros serão passagens breves e luminosas, como uma tarde de verão. Todos, com uma ou outra exceção monumental, veremos partir. Nós mesmos iremos embora em incontáveis ocasiões. Nos restará o desapego, como antes só restava a Eszter a resignação.

Por isso, a arte de esquecer é essencial. Ela me parece a mais moderna das sabedorias sentimentais, aquela que mais permite mover-se no mundo como ele é, não como nos fizeram crer que ele seria. Nesse mundo haverá sexo, haverá paixão e, às vezes, haverá amor. É provável que haja desencontro e ruptura e que sejamos forçados a começar de novo, sozinhos. Esse é o ciclo da vida como ela se apresenta no século XXI. Nele, deixar para trás e esquecer é tão essencial quanto reconhecer e se vincular. Consiste no nosso legado sentimental. Ele começou a ser elaborado por tipos rebeldes nos anos 60 e continua a ser refeito hoje em dia. Nada tem a ver com o legado de Eszter, embora este ainda nos ensine e nos comova.


IVAN MARTINS / REVISTA ÉPOCA.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

O ego frágil dos homens

Eles não conseguem encarar suas fraquezas, muitos menos contá-las.
Foi um colega de trabalho quem disse a frase inesquecível: você percebe que foi humilhado, que seu chefe passou dos limites, quando não consegue contar para sua mulher a bronca que levou no escritório.
Esse comportamento – que me parece rigorosamente verdadeiro, além de universal – revela muito sobre a psicologia masculina e sobre suas desvantagens em relação ao jeito como as mulheres lidam com o mundo e com elas mesmas. Homens não dizem a verdade. Eles contam vantagem, enquanto as mulheres contam tudo.
Pensem numa roda de mulheres discutindo o cotidiano do trabalho. Parece um muro de lamentações. Elas descrevem em detalhes as humilhações a que são submetidas, falam dos sapos terríveis que engoliram, descrevem sem pudores a própria covardia ao lidar com a agressividade do chefe ou da chefe.
Na mesma situação, os homens mentem e omitem. A grosseria do chefe que ficou sem resposta se transforma numa discussão épica. A bronca degradante vira um pedido de demissão em voz alta. A covardia, o recuo, o rabo entre as pernas, são contados com cores irreconhecíveis – ou silenciados, como se não houvesse acontecido.
Isso torna difícil entender a vida dos homens quando contada por eles mesmos. São tantos os filtros, tantas as distorções, que a realidade fica de fora. Isso vale para sexo e romance também. Quando o sujeito é demitido ou tem um enfarte ou é abandonado pela mulher, ninguém entende o que aconteceu. Ele não era amado, respeitado e desejado?
Como disse Fernando Pessoa no Poema em linha reta, os homens são todos príncipes.
Agem assim porque, ao contrário das mulheres, são incapazes de lidar com a realidade de suas próprias fraquezas. Não admitem para eles mesmos suas falhas de caráter. Movem-se por um código de honra inatingível, cruel, pueril, que determina suas vidas desde a infância – e continua a valer, como se fossem meninos, ao longo da vida adulta, embora ela demande outro conjunto de valores e emoções.
A escritora nigeriana Chimamanda Adichie descreve essa questão de forma luminosa. Ela diz que o ego dos homens é frágil, e isso obriga as mulheres a diminuir-se o tempo inteiro, para não feri-los ou humilhá-los. Que casal não se reconhece nessa frase?
Sendo homem, submetido 24 horas por dia às regras draconianas da masculinidade – que repudia o medo, não tolera a fraqueza, despreza a hesitação –, frequentemente tenho inveja das minhas gatas.
Carlota e Elisabeth vivem num mundo mais simples. São como são. Cada uma tem seu temperamento, e não há glória ou vergonha nisso. Carlota é agressiva e mandona. Elisabeth é doce e arisca. Outro dia, quando um cachorro passou pela porta do apartamento, Carlota se atirou sobre ele primeiro, Elisabeth veio logo atrás. Acharam que era uma questão de sobrevivência.
Às vezes me parece que as mulheres parecem as gatas. Elas se aceitam como são, vivem na realidade, não se batem contra moinhos. Seus conflitos são com o mundo, não com elas mesmas. Estão mais preparadas para ser felizes, acho. Vejo grandeza na fraqueza feminina – e muita fraqueza na aparente fortaleza dos homens.
IVAN MARTINS / REVISTA ÉPOCA.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O amor é interesseiro!

Estou aqui, com mais de 60, há alguns anos sozinho e me considero, enfim, na roda. E daí?

Amar é difícil. Principalmente, porque a gente costuma se apaixonar por alguém que não existe e coloca todas as expectativas na primeira pessoa que aparece pela frente. Bastam alguns miados e pronto – já se fala em amor, em compromisso e relação. Você e eu somos românticos, apesar de todos os ossos que tivemos de roer na vida. Acreditamos naquele amor puro, translúcido como um cristal. Ah, meu Deus, será que algum dia existiu? Só se for na imaginação dos escritores românticos. Mesmo um grande autor de livros românticos como Machado de Assis a certa altura mudou de gênero. Tornou-se realista e criou uma suspeita Capitu, que ninguém nunca saberá ao certo se traiu – nem mesmo seu sofrido marido, Bentinho. O que terá feito Machado de Assis tornar-se realista? Talvez tenha descoberto que o amor não é um sentimento único como um vaso de alabastro, mas um conjunto de sensações e, sim, interesses.

Estou aqui, com mais de 60, há alguns anos sozinho e me considero, enfim, na roda. Sempre ouço perguntas, se tento um novo relacionamento.

– O interesse não é porque você é autor de televisão?

– Tem certeza de que não é pela grana?

– Será que gostam de você por você mesmo?
Aí me faço a pergunta: quem sou eu mesmo? Que identidade é essa, única, inexplicável, que define uma pessoa? A alma? Mas alguém está habilitado a decifrar minha alma? Sinceramente, nem eu! Meu corpo? Uau! Depois dos 60, é preciso ser sincero consigo mesmo. Não ganharei mais o título de Mr. Brasil, não serei campeão de natação, muito menos terei barriguinha de tanque. Posso fazer um esforço para não me tornar um barril, mas é isso aí. “Eu mesmo” é uma entidade que não existe de modo absoluto. E se fosse mendigo e pedisse esmola nas ruas? Seria “eu mesmo”? Em tese, continuaria a mesma pessoa. Mas meus sentimentos, raivas, aparência física seriam bem diferentes. Talvez me apaixonasse por alguém que me oferecesse um prato de macarrão. Perdidamente! Sim, poderia continuar a ser um sujeito sensível. Mas alguém descobriria, se eu catasse lata pela rua? E se tivesse seguido uma de minhas outras vocações e fosse pesquisador de biologia, área que amo? Ou historiador (cheguei a cursar até o 3o ano da faculdade de história da USP)? Meus papos seriam outros, minhas companhias também, talvez até meus dentes. As possíveis vidas que poderia ter tido (um acidente, uma deficiência também contam) me levariam a diferenças na forma de ser. Talvez nem sorrisse – mas grunhisse diante de uma existência malévola. Não seria esse “eu mesmo” que sou agora. Recentemente, um ator famoso, com mais de 80, casado com uma moça na casa dos 20, rebateu as críticas:

– Ela cuida de mim agora. Quando me for, cuidarei dela.

Sim, ela pode ter interesse na herança. E daí, se proporciona uma vida agradável a seu velhinho? Conheci uma mulher de família rica que, depois de dois maridos, casou-se com o personal trainer. Um cara ótimo. Ajuda com os filhos dela, nos cuidados da casa, tudo. Aceita alegremente os luxos que ela proporciona. Ouvi muitas críticas ao rapaz. Mas quem é o interesseiro? Ele no dinheiro dela? Ou ela em seu corpo jovem, musculoso e na dedicação? Para mim, é apenas uma troca justa. A gente costuma ser dramático e achar que, um dia, ela aparecerá estrangulada, enquanto ele foge com as joias. Na maioria dos casos, não é o que acontece. Eles vivem a relação, sentem-se felizes, e acham que isso é amor.
Fui criado para acreditar no sentimento avassalador, do príncipe que dança com Cinderela e se apaixona perdidamente. Bem, vamos combinar, Cinderela era interesseira. Nem conhecia o rapaz, mas, já que era príncipe e tinha castelo, casou. O príncipe provavelmente era podólatra, pois saiu de sapatinho na mão, em busca do pezinho da moça. Não importavam o rosto, os cabelos cheios de cinzas e gravetos, nada. Só o pezinho. Não diz a lenda que foram felizes para sempre?

Meses atrás, um amigo diretor, já bem maduro, saía com uma moça lindíssima, cobiçada pelo país todo. Perguntei:

– Mas ela gosta de você?

Ele respondeu, sábio:

– Sabe, sou um pacote. Do pacote, ela gosta sim.

Nunca ouvi maior verdade. Sou um pacote, você provavelmente também é. É esse o grande segredo do amor. Não é uma coisa única, quase uma entidade que nos possui. Mas um belo pacote, bom de desembrulhar.
Walcyr Carrasco / Revista Época.
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