Nós decidimos que o amor é um sentimento tão nobre que, em nome dele, se podem exercer os mais terríveis egoísmos. Será? IVAN MARTINS / REVISTA ÉPOCA.
Eles se conheceram no momento em que ela nasceu, 70 anos atrás. Eram primos, se apaixonaram em Paris no início dos anos 1960 e se casaram em Londres, logo em seguida. Formavam um casal desde então, com cinco filhos e vários netos. Faz pouco, as revistas espanholas de fofoca revelaram que ele, aos 79 anos, a deixou para viver um romance crepuscular com uma beldade internacional de 64 anos, conhecida pelos casamentos com homens ricos e influentes.
Essa história de paixão e abandono seria apenas uma entre milhões se os protagonistas não fossem Mario Vargas Llosa – o brilhante escritor peruano, prêmio Nobel de literatura de 2010 - sua mulher Patrícia e, no terceiro vértice do triângulo, a modelo filipina Isabel Preysler, ex-mulher do cantor Júlio Iglesias. Por serem quem são, o enredo privado tornou-se público e me permitiu fuçar a vida alheia com uma pergunta que me persegue: a paixão justifica qualquer coisa?
O que eu gostaria de saber é se o sujeito, qualquer sujeito, deveria virar as costas à companheira de 50 anos para viver um romance tórrido no ocaso da vida dos dois. Fico me perguntando se é lícito trocar um amor e uma lealdade tão antigos por um sentimento novo, ainda que arrebatador, deixando a ex-mulher à beira de um abismo, sem tempo para cruzá-lo. Sozinha e humilhada no último trecho da existência.
Será que o amor, além de estética, não deveria ter ética?
Todo mundo conhece casos dramáticos que têm por justificativa o mandato irrecusável da paixão. Há mulher que larga os filhos e some com o amante para nunca mais voltar. Homem que se apaixona fora de casa e deixa a mulher grávida desamparada. Gente que muda de país atrás do amor, deixando para trás maridos, mulheres e filhos aturdidos. Ou – lembremos de Woody Allen – homens que se apaixonam pelas enteadas e casam-se com elas, lançando a ex-mulher e toda a família numa espiral de ciúme e loucura.
Todos os dias se cometem pequenas ou grandes atrocidades afetivas que se tornam mais ou menos aceitáveis pela evocação do amor. Nós, coletivamente, decidimos que esse sentimento é tão nobre que em nome dele se pode exercer até o mais terrível egoísmo. O apaixonado pode fazer tudo, exceto cometer violência. O amor é a exceção que suspende todas as regras.
Somente quem nunca amou perdidamente pode olhar para esse aspecto do drama humano sem simpatia. O amor não dá apenas sentido e profundidade à vida, ele a enche de cores, cheiros e texturas. Ele legitima a experiência de viver. No auge da febre amorosa, tudo cai para segundo plano. Trabalho, família, até os filhos. A felicidade que advém desse abandono – ou, melhor dizendo, a intensidade que nasce dele – é tão imensa que nos turva os sentidos e estremece a razão. A pessoa apaixonada vive num mundo à parte e não consegue existir inteiramente na ausência do outro. Isso influencia todas as suas decisões. É uma espécie luminosa de doença – e, assim como as doenças, afeta uns mais do que outros.
A maioria nunca se permitirá cair de amores pela enteada, não deixará os filhos para trás numa aventura romântica e nem abandonará o companheiro de uma vida pela promessa de uma derradeira paixão. A maioria, mesmo amando, jamais se permitirá uma troca tão radical de lealdades. Quem age assim, com parcimônia, se mostra melhor ou pior que os outros? É ético ou apenas covarde, incapaz de chegar ao fundo de seus próprios sentimentos?
Difícil.
Por maior que seja a minha simpatia pelos apaixonados, acredito que a gente se move num universo definido por sentimentos e valores. Se estar com o amor da minha vida exige que eu jogue minha biografia pela janela e atropele os sentimentos dos outros como um ônibus desgovernado, bem, talvez não seja o amor da minha vida.
Tendo amado algumas vezes, nem sempre de forma fácil, nunca me foi sugerido que abandonasse alguma parte essencial de mim. Das minhas ideias, do me passado ou dos meus afetos. Suspeito que não aceitaria. Tal como eu entendo, o amor é uma forma elevada de aceitação. Eu venho como sou e com aquilo que carrego. O outro se aproxima com o que traz. Nos encontramos nos braços um do outro, no meio do caminho. Quando essa comunhão não é possível, talvez não seja amor. Talvez seja um equívoco.
Isso não torna mais fácil responder à pergunta inicial do texto. É aceitável abandonar a mulher (ou o homem) da vida inteira por uma última paixão? É lícito causar tamanho sofrimento a quem foi parceiro, amante e confidente por tantos anos – e não tem mais tempo para recomeçar?
Cada um responde a isso de acordo com a sua ética e o seu temperamento. Da minha parte, mesmo sentindo que o amor é o elemento central da existência, ainda assim não acho que ele justifique tudo. Ele não pode ser a medida de todas as coisas. Há lealdades que têm de ser mantidas e laços que precisam ser preservados. Eu me recuso a viver num mundo em que a coisa mais importante seja a minha felicidade. Seria um mundo mesquinho.
Mas a verdade é que eu não tenho 79 anos, não sinto que o meu tempo está acabando, não estou perdidamente apaixonado por uma modelo e não tenho que escolher, de forma tão visceral, entre ser leal e ser feliz. Ainda bem.
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