Entenda como será a sua vida póstuma nas redes sociais – se elas sobreviverem a você!
Até pouco tempo atrás, eu costumava dizer que tinha a vida eterna para descansar. Não passava de uma forma de desculpar minha compulsão pelo movimento, a incurável hiperatividade que muitos confundem com competência e amor pelo trabalho, mas não passa de um transtorno (felizmente, devo ser o único jornalista transtornado no mundo). Mas agora nem isso eu tenho mais a declarar, pois já sei que nem mesmo na eternidade haverá meios de repouso porque tudo o que eu fui durante a vida – uma quantidade limitada de informações que devem caber em um pen drive de 4 Gigabytes, se muito – permanecerá armazenado no imenso banco de memória digital da civilização conhecido como internet. Não só a minha improvável contribuição à humanidade, que deveria figurar nos textos que redigi, como também as maiores bobagens que eu afirmei em bate-papos e e-mails, as gafes ou acertos na carreira, as imagens que registrei.
A era digital ensina dura lição: a vida é uma errata do princípio ao fim (o crítico George Steiner aprendeu-a em 1997, ao intitular seu livro de memórias de Errata). Uma errata que não corrige nada, pois os dias vividos não podem ser alterados, salvo por meio de artifícios como a linha do tempo do Facebook. Ela organiza para você dados que talvez você não queira ver organizados. Quando o sujeito sair de cena e não estiver mais aqui para se defender, tudo estará dito, e em seu lugar, inclusive com correções e reescrituras de sua história.
Em uma entrevista que fiz com o compositor americano John Cage (1912-1992) três anos antes de sua morte, ele disse uma frase que na época me soou estranha: “Ninguém mais vai morrer, por causa de tecnologia.” Parecia um enigma zen budista, mas só agora entendo o que Cage falou. A tecnologia nos tornou eternos. Nossas imagens vão pairar para sempre por aí. Ainda não inventaram um modo de manter nossos corpos e o que eles carregam dentro, a que muitos chamam alma. Talvez os corpos-almas não sejam tão importantes assim. Importa é se e como estão registrados pelos meios técnicos. Assim, aquilo que chamávamos antigamente de mortos não descansam mais em paz na era digital. De alguma maneira, encontram-se insepultos. Suas emanações assombram o dia a dia dos ainda viventes.
Vou tentar explicar essa eternidade artificial com exemplos. As redes sociais trazem os melhores casos. Os mortos antigos pelo menos pediam inscrições nas lápides de seus túmulos, e em geral eram atendidos. Os atuais não têm nem mesmo tal direito. A posteridade deles nas redes sociais se multiplicou em inscrições, como se lápides constituíssem dízimas periódicas de tributos, que tendem a um só tempo ao infinito e à desimportância.
Não estou falando das celebridades vítimas dos fãs que se apossam de suas imagens, obra e nomes, mais ou menos como o produtor Dr. Dre faz agora com o rapper Tupac, assassinado em 1996. Dr. Dre age em nome do falecido, transformando-o em um holograma manipulável programado por computador, que deve sair em turnê em breve. São parecidos os casos dos perfis de Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector, presas dos invasores de suas memórias, verdadeiros vampiros literários. Penso, sim, nos cidadãos comuns.Um número incalculável de integrantes de redes sociais já morreu. Obviamente, o próximo poderá ser você, eu, qualquer um. Examinar a morte em rede de conhecidos pode ser elucidativo – é como se sentir morto por antecipação. Muitos amigos que se foram continuam com os perfis no Facebook, como se estivessem vivos, sorridentes, cheios de relacionamento - e ainda consumindo produtos oferecidos pelos sites. Outros espectros aparecem como sugestão de amizade no item "gente que você deve conhecer".
Quando a pessoa morre (já fui avisado da morte de amigos por Facebook, Orkut, Twitter), sua desencarnação digital nas redes sociais observa seis passos fundamentais. O primeiro é uma agitação nervosa por parte dos amigos. Todos querem saber como, quando, onde e por que aconteceu. Aí o perfil do recém-falecido se enche de trocas de informações. O passo seguinte está nos elogios. Gente curte o perfil do defunto, gente exalta suas virtudes - sim, basta morrer para virar santo. Depois dos tributos, acontece aquilo que eu denomino o velório on line: as pessoas conversam sobre o morto, lamentam-se, riem, contam piadas umas às outras. O bate-papo promete durar bem mais que os velórios off-line. Comparecem até carpideiras digitais, que se derramam em lágrimas de crocodilo. No quarto passo, o da mesa-branca, dão as caras aquelas pessoas que mandam mensagens diretamente ao morto, como se quisessem conversar com o espírito que poderia estar on line em algum lugar do paraíso – evidentemente, ele não responde. O próximo passo é o mais interessante. Ele pode ser definido como recordação coletiva. Antigos colegas, amigos, amores e parentes se reúnem no perfil do falecido com o objetivo de fazer um mutirão e reconstruir a sua vida por meio de fotos, vídeos, gravações, desenhos e manuscritos. Como em um quebra-cabeça grupal, aspectos desconhecidos da vida do sujeito emergem e provocam surpresas. Exemplo: fiquei sabendo que um velho amigo meu tinha sido campeão de futebol júnior no perfil dele. Fotos e episódios que eu não conhecia vieram à tona, para meu espanto. Por fim, as pessoas vão deixando ao deus-dará aquele triste perfil, que fica abandonado feito um túmulo real ignorado pelos entes queridos, que só exibe flores secas depositadas por quem já se esqueceu de voltar. Mas a foto do perfil continua a sorrir.
Entendo que celebrar, lembrar e contar a vida do morto, bem como bater papo com ele pode servir como consolação para muitas pessoas – além de ser uma forma de manter a memória viva daquele que foi embora. Mas eu não penso assim. A sensação de encontrar mortos vivos nas redes sociais me parece medonha. Tanto que já combinei com uma pessoa próxima que, caso eu morra sem querer, elimine imediatamente os meus perfis espalhados por aí. Eis aí uma lição da tecnologia da informação: morrer, tal qual viver, é uma banalidade. No entanto, essa banalidade se potencializa ainda mais nas redes sociais. Não parece existir maneira de restituir aos mortos o seu direito ao jazigo perpétuo. Lembrando Cage, ninguém mais vai viver ou morrer em paz, por causa da tecnologia.
Luís Antônio Giron - Revista Época.
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