Ao entrar na escola Tasso da Silveira, em Realengo, o atirador Wellington de Oliveira, de 23 anos, foi para a sala do oitavo ano, onde estava a professora Leila D’Angelo, 48. Aqui, ela conta os detalhes do massacre e como a tragédia deve mudar a maneira de ela levar a vida e dar aulas.
Por Depoimento a Martha Ferreira
“Quando o relógio marcou 8h15 da manhã, abri a porta e vi o Wellington de Oliveira com uma bolsa na mão. Ele
parecia calmo”
parecia calmo”
Minha mãe era professora de português e, talvez por influência dela, a matéria de que eu mais gostava era a que ela lecionava. A vida toda quis trabalhar com adolescentes e sonhava dar aulas em escolas. Por isso prestei vestibular para Letras em 1980. Foi uma alegria indescritível quando fui aprovada. Era o primeiro passo para a realização do meu sonho de menina. Comecei a dar aulas aos 23 anos e, desde que me tornei professora, colecionei mais histórias boas do que ruins. Ajudei a reestruturar famílias desajustadas, reaproximei parentes. Uma vez, fiquei preocupada com uma aluna extremamente bagunceira. Chamei a mãe dela para uma conversa. Coloquei filha e mãe frente a frente e, depois de muito falar, as duas caíram num choro convulsivo. Viviam uma vida de muita tristeza por conta do alcoolismo do pai da menina. Decidi dar ainda mais atenção a essa aluna, que se tornou uma menina estudiosa, gentil e dedicada. Fiquei feliz com o final positivo dessa história. Era justamente a vontade de mudar a vida de crianças de classes menos favorecidas e de ensinar que me motivava. Ao conseguir uma vitória como essa, tinha certeza de que estava plenamente realizada com a escolha da minha profissão.
Sempre dei aula em escolas particulares, quando, em 1994, fiz o concurso para a Prefeitura do Rio e passei, conquistando uma vaga na escola Tasso da Silveira, em Realengo.Também garanti outra vaga em um colégio do estado em Resende, no interior do Rio, onde vivo. A Tasso da Silveira é uma escola especial e eu realmente amo trabalhar lá. A equipe é uma grande família: a maioria dos professores está ali há mais de dez anos. A Tasso tem uma fama de escola rígida que não temos nenhuma intenção de mudar. Seus alunos precisam usar uniformes, cumprir regras e horários. Boa parte dos estudantes é composta por filhos de ex-alunos e realmente impera um clima de comunidade. Para se ter uma ideia da qualidade do ensino, o filho do diretor estuda lá — o que não é muito comum em escolas de periferia do Rio. Claro que havia alguns problemas de estrutura, algumas rusgas. Duas professoras não se falavam havia 11 anos por causa de uma bobagem. Depois da tragédia, reataram a amizade.
Comecei a dar aulas para a turma do oitavo ano — com quem eu estava no momento em que o atirador entrou na sala — há dois anos, quando eles tinham 11. Era uma turma bastante agitada, que exigia um empenho grande de professores. O ano passado, inclusive, foi muito desafiador — eles estavam vivendo o auge da rebeldia. Coloquei para mim que conseguiria vencer essa dificuldade e faria a turma voltar a ser mais calma e concentrada. Por isso, pedi ao diretor para continuar com eles no oitavo ano, em 2011, para concluir essa missão.
Uma das alunas com quem eu mais conversava dessa classe era a Larissa Martins, que morreu no massacre. Ela era alegre, esperta e muito viva. Na hora da aula, tinha de separá-la da melhor amiga para conseguirem ficar quietas. Elas entendiam, não reclamavam porque sabiam que era bom para elas. Quando a aula terminava, vinham até mim conversar sobre suas questõezinhas. Pediam conselhos sobre namorados. Eu estava até empenhada em ajudar a Larissa a se aproximar do menino de que gostava. Conversávamos sobre sexualidade, sobre como prevenir a gravidez na adolescência — o que faço com todas as minhas alunas meninas.
Na manhã da quinta-feira, dia 7 de abril, nada me dizia que viveria o pior dia da minha vida. Acordei antes das seis da manhã, tomei um café simples e sai para trabalhar com a alegria de sempre. Sou uma pessoa bem-humorada. E assim cheguei à escola, às 7 horas da manhã, e dei a primeira aula de português. Cerca de 50 minutos depois fui à sala 4 dar aula para essa turma do oitavo ano. Quando o relógio marcou 8h15 ouvi uma batida seca na porta. Abri e vi o Wellington de Oliveira. Ele pareceia calmo. Entrou, disse que ia dar uma palestra e pôs uma bolsa de viagem em cima da mesa. Quando fui dar uma bronca por não ter pedido licença, começou a atirar nos alunos.
Até o terceiro tiro, não havia entendido a loucura da realidade que estava presenciando. Nos milésimos de segundos em que tive alguma lucidez, pensei se deveria ficar ali esperando-o atirar em todas as crianças, e certamente me matar também, ou sair em busca de ajuda. Totalmente em pânico, gritei para os alunos fugirem. Três meninos saíram correndo. Fugi atrás deles, desesperada, em busca de ajuda. Desci as escadas como louca e parei na cozinha. Pedi à cozinheira para ligar para a polícia e contei o que estava acontecendo. Um dos meninos que estava na minha sala, o Alan, foi quem encontrou o bombeiro que nos ajudou.
As lembranças desses momentos ainda são confusas. Da cozinha, me levaram para a casa do caseiro da escola. Lá, me deram um copo de água com açúcar. Em alguns minutos, a polícia entrou na escola e atirou no Wellington, que na sequência se matou. Fui para a sala dos professores quando soubemos que estava tudo terminado. Foi só nessa hora que tive noção da proporção daquela tragédia. Havia policiais, gente gritando, um entra e sai enorme na escola, as passagens interditadas. Não voltei na minha sala, não tive coragem. Não vi o corpo de Wellington na escada. Depois, vendo as fotos dele nos jornais, não consegui me lembrar de ter dado aula para ele. Não sei se fui sua professora e não quis pesquisar nos registros da escola. Não quero saber de mais nada sobre ele, para tentar esquecer mais rápido aqueles minutos de horror. Liguei para o meu pai, que tem 82 anos, e disse que estava bem. Na sequência, liguei para o meu marido. Não conseguia parar de chorar.
“Não dormi na noite depois do massacre. Cochilava e acordava com pesadelos e o coração aos pulos. Perdi três quilos
desde então ”
Na noite do massacre, claro que não dormi. Quando cochilava, pesadelos me acordavam. Não lembro direito o que sonhava, mas despertava com o coração aos pulos. Só consegui descansar algumas horas, três dias depois, no domingo. Não tomei nenhum remédio, apenas florais. Também não senti necessidade de procurar ajuda psicológica. Apeguei-me ainda mais ao meu marido e aos meus dois filhos, Pedro, de 20 anos, e Daniel, de 16, que também ficaram abalados com o meu sofrimento e com a possibilidade de me perder.
Ouvi muitas críticas pelo fato de ter deixado a classe com o atirador lá dentro. As imagens das câmeras da escola que foram divulgadas na TV mostraram eu saindo da classe na frente de alguns alunos. Claro que, depois que tudo terminou, fiquei me perguntando se havia tomado a atitude correta. Isso me fere. Minha intenção sempre foi tentar salvar as crianças — essa é a essência da minha profissão. Mas sou mãe e concluí que fiz a coisa certa. Se não tivesse corrido, a tragédia poderia ter sido bem pior porque ele teria ainda mais tempo para seguir atirando. Prefiro acreditar que ajudei a salvar vidas.
Os dias que se seguiram foram difíceis. Não consegui comer nada. Perdi três quilos desde então. Chorei muito quando a mãe da querida Larissa me ligou, oito dias depois do crime, para contar que leu em seu caderno que eu era a sua professora preferida. Tenho conversado com os alunos, mesmo quando as aulas ainda estavam suspensas. Consegui convencer três deles a não saírem da escola. Falei que a gente tem de viver essa dor juntos. Se saíssem da escola, não teriam o nosso apoio diário. Por exemplo, se daqui a algum tempo um aluno quiser parar no meio da escola e chorar, vamos acolhê-lo e até chorar junto com ele. Em outro colégio, é provável que tenham de guardar essa dor. Chorei também quando a escola reabriu e vi minhas crianças dispostas a lutar para retomar a vida. Foi emocionante demais ver aqueles meninos, tão pequenos e tão guerreiros. Eles se abraçavam e prometiam total solidariedade aos colegas que precisassem de alguma ajuda. Foram momentos tocantes, de muita fé e esperança em dias melhores.
Vi a morte de perto e perdi alunos queridos. Mas não tenho ódio. Tenho muita compaixão pelo assassino e, principalmente, por sua família, que vai viver marcada por esse massacre. Ele era uma alma atormentada por sofrimentos, vivendo a opressão de todos os lados. Em nenhum momento pensei em desistir de dar aulas. Amo minha profissão. A maior lição que aprendi com essa desgraça é jamais deixar um aluno quieto sem a devida atenção. Nós, professores, temos a tendência a focar nos alunos agitados, bagunceiros, achando que são esses que têm problemas em casa. E de fato têm. Mas agora sei que os mais calados podem ser ainda mais problemáticos, como era o caso do autor do massacre. Talvez se algum professor tivesse tido esse insight com o Wellington, ele poderia ter se tornado outra pessoa.
A outra professora, que estava na sala 3, caiu numa depressão profunda e está de licença. Nem sabemos se conseguirá voltar a uma sala de aula. Rezo por ela todos os dias e agradeço a Deus por me dar força para seguir. Cada dia estou um pouco mais forte. Ainda choro de saudade das crianças e nem todas as noites tenho um sono tranquilo. Mas hoje olho a minha família com mais amor. Toda hora peço um abraço a um filho. Também sinto mais compaixão pelo sofrimento alheio. Dou mais valor a coisas simples: um domingo de folga, um abraço, uma palavra de carinho e, principalmente, à lembrança de que sou uma sobrevivente.”
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