segunda-feira, 19 de março de 2012

Palmada no descontrole


Enquanto a Lei da Palmada não entra em vigor, veja aqui por que bater na criança ainda é uma alternativa tão aceita pela sociedade - e como, apesar de muitos ainda acharem o contrário, ela NÃO funciona.
Mais de um ano após o projeto de lei contra maus-tratos ter causado um alvoroço de discussões no Brasil, nesta terça (22) o assunto voltou a ser discutido em audiência pública promovida pela Comissão Especial da Educação Sem Uso de Castigos Corporais, que analisa o Projeto de Lei 7672/10. Tudo indica que a Lei da Palmada deve ser votada em comissão especial criada para estudar a proposta no dia 6 de dezembro. Se for aprovada, segue para o Senado e, então, poderá alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente. Tudo para garantir que as crianças sejam educadas pelos adultos com carinho – da forma que merecem.

Theo tem ainda poucos meses de vida, mas o sofrimento com as cólicas parece de gente grande. Um dia, depois de um longo choro, ele finalmente dormiu. Mas naquele momento sua prima, Isabela, 2 anos, entrou no quarto do bebê tagarelando. A mãe pediu à filha que falasse baixinho para não acordar o primo. Isabela, no seu íntimo, ouviu uma ordem completamente inversa e começou a falar cada vez mais alto. A mãe insistiu, ainda com muito jeito, e a menina continuou gritando. Até que a mãe soltou a frase ilustre: “Quer apanhar?”. E a menina, surpreendentemente disse: “Queeerooo!”, como se fosse ganhar um brinquedo novo.

De um lado há Isabela, que, como toda criança da sua faixa etária, entende e pronuncia várias palavras, mas não sabe exatamente o que elas significam. De outro, a publicitária Tatiane Costa, 30, assume que já esteve várias vezes por um triz de dar uma palmada na filha, principalmente quando se sente desafiada por ela, e que até já chegou a ameaçá-la, como no dia descrito acima. Mas Tatiane resiste. “Quero que ela me respeite e me obedeça entendendo que eu a amo e quero o melhor para ela, e não por medo da ameaça de dor física.”

Não há pai ou mãe que não tenha vivido essa dúvida em algum momento. Estamos em uma sociedade à beira de um ataque de nervos e a violência parece uma alternativa. “A palmada nos filhos é uma estratégia bastante utilizada, como uma medida de emergência ou quando julgam ter esgotado todos os recursos”, observa Luciana Caetano, autora de É Possível Educar Sem Palmadas? (Ed. Paulinas). “Só que os pais confundem palmada com impor limites.” E não notam, então, que ela não funciona de fato. Mais que isso: tem efeitos colaterais bem sérios. “A surra alivia a culpa. A criança que leva uma palmada se sente livre para fazer a coisa errada novamente, pois ‘já pagou’ pelo erro anterior. Por outro lado, pode gerar na criança o sentimento de que é muito má e desobediente e, por isso, merece esse tipo de tratamento.”
O medo de falhar na educação dos filhos nos atormenta. E hoje parece estar tudo ainda mais complexo do que na época de nossos pais e avós. Sentimos uma pressão geral para não cometermos deslizes na criação dos filhos, que também não podem errar.
Resultado? Um grande conflito sobre como impor limites, ensiná-los a lidar com frustrações e, principalmente, fazê-los aceitar regras sem, para isso, temer as hierarquias e, sim, respeitá-las. Em meio a tanta correria, lutamos para ganhar tempo. E o tempo da educação é outro.
Não é à toa que a chamada Lei da Palmada – projeto apresentado em maio de 2010 pela ministra de Direitos Humanos, Maria do Rosário, ainda em tramitação – gerou tanto debate entre especialistas e desaprovação de boa parte da população. A lei que veta castigos físicos a crianças foi reprovada por 54% dos 10.905 entrevistados pelo Instituto Datafolha em julho do ano passado, e 36% revelaram ser favoráveis. A mesma pesquisa identificou que 72% dos que já eram pais haviam sofrido algum tipo de castigo físico, sendo que 16% disseram que apanhavam sempre quando crianças.
Segundo os especialistas, há uma tendência de repetição de comportamento de quem apanhou dos pais, como o caso da assistente administrativo Thaís Sadério, 31 anos, mãe de duas meninas, com 6 e 8. “Acho que as palmadas educam. Levei as minhas quando criança e não sou traumatizada ou revoltada. Funcionou comigo e com meus irmãos. Com as minhas filhas, eu chamo atenção até duas vezes, alertando para não fazer e por que não fazer. Se repetirem, entro com as palmadas. É o meu jeito de impor limites agora para formar um adulto melhor”, diz.
Temos direito à palmada?
A discussão sobre a lei trouxe muitas opiniões diversas, inclusive a favor do direito dos pais de bater “de vez em quando” e contrárias à interferência do Estado sobre a educação dos filhos de cada família. Durante uma audiência pública no dia 30 de agosto, em Brasília, alguns equívocos criados em torno da lei foram esclarecidos: a lei não propõe prender ninguém. A principal causa do projeto é provocar a reflexão nas famílias brasileiras sobre práticas automáticas e sem sentido, indicando que não podem ser utilizados castigos corporais e tratamento cruel e degradante. “Queremos uma lei que apoie as famílias. Jamais uma intervenção do Estado na vida das pessoas”, declarou a ministra Maria do Rosário, em evento sobre o assunto em junho deste ano.
A terapeuta infantil Denise Dias, autora do recém-lançado Tapa na Bunda – Como Impor Limites e Estabelecer um Relacionamento Sadio com Crianças em Tempos Politicamente Corretos (Ed. Matrix), acha que foram atribuídos significados inadequados a palavras como autoridade e castigo, e isso contribuiria para que os “pais de hoje sofram por não ter a certeza de como agir como pais e pequem na permissividade”. Ela defende a palmada e castigos desde que aplicados com critérios conforme o nível de infração cometida pela criança. “Se o seu filho joga no chão o brinquedo do irmãozinho e você já lasca um tapa na poupança dele, o que vai fazer quando ele gritar ou xingar você?”, alerta Denise no livro.
Ângela Maria Gonçalves, 43 anos, mãe de um menino com 4, já passou por isso. Bateu no filho porque ele a xingou, algo que ela não admite. “Foi uma situação limite. Eu costumo ser bastante carinhosa e conversar muito com ele. Educar dá trabalho e requer habilidade e esforço”, diz.
Educar realmente dá trabalho. Talvez por isso cada vez mais se empurre essa responsabilidade para a escola. Mas, no Reino Unido, está sendo exigido da escola até mesmo a volta da palmatória. Segundo dados de uma pesquisa do suplemento de educação do jornal The Times, que ouviu mais de 2 mil pais e mães ingleses, 49% acham que castigos dados por professores deveriam voltar para as escolas. A pesquisa foi lançada em um momento em que o secretário de Educação, Michael Gove, quer dar mais poder aos professores para repreender os alunos. Muitos professores não concordam. Desde 1984 a legislação inglesa veta castigos físicos nas escolas.
O pediatra Lauro Monteiro, editor do site Observatório da Infância, risca de sua lista qualquer tipo de agressão, seja um tapinha, seja uma surra. Para ele, as crianças devem ter limites bem estabelecidos, com firmeza, pelos pais. “Bater em uma criança é sempre um ato de covardia, abuso do mais forte contra o mais fraco”, ressalta ele, que esteve 35 anos à frente do Serviço de Pediatria do Hospital Municipal Souza Aguiar, do Rio de Janeiro, 18 anos na Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência (Abrapia) e 40 anos em consultório.
No Instituto da Criança, do Hospital das Clínicas de São Paulo, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), a equipe de médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos é treinada para diferenciar uma violência de um acidente, e os maus-tratos são comunicados ao Conselho Tutelar ou à Vara da Infância. No primeiro semestre de 2010, o Instituto registrou 60 casos de maus-tratos infantis, 36% a mais que o ano anterior. De acordo com o pediatra da casa, Antônio Carlos Alves Cardoso, 75% das agressões acontecem com crianças menores de 2 anos. Em 60% dos casos a agressora é a mãe. De acordo com a tese de doutorado de Cardoso sobre o assunto, mais de 90% das que sofrem agressão terão sequelas físicas ou psicológicas. Mas bater é uma das formas de maus-tratos à criança. Existem outras tão ou mais graves como as agressões psicológicas, abuso sexual, síndrome do bebê sacudido e negligência. Essa, segundo Cardoso, responde por 60% das ocorrências, enquanto agressão física está em 25% dos registros.
A prefeitura de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, foi a primeira a obrigar redes pública e privada de atendimento médico a notificar casos de suspeita de agressão. Antes da implantação do Sistema Integrado de Saúde, os pais levavam os filhos com hematomas a locais diferentes de atendimento para não levantar suspeita. Agora, com a rede de dados, checa-se o histórico. Após a criação do serviço, em quatro meses o número de notificações chegou a 51, enquanto em todo o ano anterior foram 26.
Fotomontagem: Jupiterimages/Gettyimages/Sylvia Torres/Corbis
Rumo ao bullying
Mas a grande pergunta de muitos pais é: dá para educar sem bater? Para o administrador de empresas Ricardo Vieira Simplício, 38 anos, pai de um casal, Giulia, 13, e João, 3, sim, pois ele defende que “educar é pegar na mão” e dialogar. Já bateu uma vez nos dois, apanhou quando pequeno, mas acredita que na conversa e sob estado emocional equilibrado dos pais é que eles aprendem de fato. “Abre um horizonte incrível de possibilidades”, diz Simplício.
Na cidade de São Carlos, interior de São Paulo, Lúcia Cavalcanti de Albuquerque Williams, coordenadora do Laboratório de Análise e Prevenção da Violência, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), estuda o assunto e diz que ao contrário do que muitos adultos pensam, o castigo corporal não torna as crianças obedientes a curto prazo, não promove a cooperação a longo prazo ou a internalização de valores morais, nem reduz a agressão ou o comportamento antissocial. O uso frequente desse método ensina para a criança que os conflitos e diferenças podem ser resolvidos com o uso da força e alimentam o ciclo de violência em nossa sociedade. Segundo ela, pesquisas indicam que os alunos que são autores de bullying na escola, em sua maioria, vêm de lares onde há utilização de violência física como forma de disciplina. “Geralmente a família é descrita como hostil e permissiva, tem poucas habilidades de resolução de conflitos e ensina suas crianças a revidarem à mínima provocação”, conta. Em um estudo recente realizado por ela e pela psicóloga Fernanda Pinheiro com 239 alunos de três escolas públicas da cidade, com idades entre 11 e 15 anos, 49% admitiram envolvimento com bullying nos três meses anteriores à pesquisa, sendo que 26% disseram-se vítimas, 21% alvos e autores, e 3% apenas autores. De todos eles, somente 15% afirmaram não ter sofrido qualquer violência dos pais.
Muitas vezes, a violência física ou psicológica acaba acontecendo num rompante, e não por metodologia. Nesses momentos os pais podem sentar com seus filhos e serem sinceros com eles, explicando que perderam o controle e que se arrependem. Esse tipo de atitude, que é um ótimo exemplo de humildade e de respeito com o outro, é estimulada pela rede Não Bata, Eduque, criada para provocar o debate no Brasil. Duas das instituições integrantes dela são a Fundação Xuxa Meneghel e a Save the Children, da Suécia. Suas representantes, respectivamente Xuxa Meneghel e a rainha Silvia, participaram no meio deste ano de um evento na Câmara dos Deputados sobre a Lei da Palmada, e prometeram se manter atentas ao rumo que a discussão irá tomar. A Suécia tem experiência: foi o primeiro país a banir castigos físicos, em 1979. Hoje outras 28 nações – como Dinamarca, Espanha, Alemanha, Portugal, Uruguai e Venezuela – aprovaram medidas banindo a prática. “Uma das coisas mais importantes para evitar ou diminuir os conflitos dentro de casa é conhecer as fases do desenvolvimento de uma criança, bem como suas características, limitações e os cuidados necessários em cada uma delas. Sem conhecer esses limites dados pelo desenvolvimento, os pais tendem a se irritar com o que a criança faz ou não consegue fazer”, diz Ana Paula Rodrigues, coordenadora do Programa de Atendimento Integrado da Fundação Xuxa Meneghel.
Ser pai exige treino contínuo. Mudamos de ideia, aprendemos e reaprendemos o tempo todo. O mundo está assim: por trás desses movimentos em que as pessoas se tornam mais conscientes de seus atos há uma palavra mágica – respeito. Crianças merecem respeito, amor e afeto, e também têm o direito de crescer com limites. A terapeuta Luciana Caetano apresenta em seu livro um capítulo chamado “Amor”, em que ela elenca desejos de “boas escolhas” aos pais. A primeira delas termina bem esta reportagem: “Que você escolha educar o seu filho todo dia, em vez de uma vez por todas.”
Por que não ser agressivo com os filhos nunca
• Mesmo obedecendo, a criança que apanha não aprende, apenas deixa de fazer certas coisas por medo de apanhar.
• O castigo físico ensina que “é batendo que comunicamos coisas importantes”. Quando têm medo de ser castigadas, as crianças não se arriscam a tentar coisas novas. Assim, não desenvolvem sua criatividade, sua inteligência e seus sentidos.
• Apanhar pode gerar na criança o sentimento de que ela é muito má e desobediente e, por isso, merece esse tipo de tratamento.
• A maioria dos autores ou vítimas de bullying vêm de lares onde há utilização de violência física como forma de disciplina.
• Até um adulto, quando apanha, sente-se humilhado. Ninguém tem motivação para agradar a pessoa que maltrata. O sentimento é de ressentimento, medo ou desejo de revidar.
• 38% de crianças e jovens que fogem de casa apontam como causa a tentativa de escapar dos problemas de convivência no lar.
• Os maus-tratos prejudicam o desenvolvimento porque reduzem o funcionamento intelectual - afetando a memória, a leitura e as habilidades intelectuais em geral, o que traz problemas escolares; levam a condutas inadequadas, antissociais e repetição de modelos agressivos; geram ansiedade, depressão, distúrbios no sono, enurese noturna e distúrbios de alimentação.
Fonte: Rede Não Bata, Eduque e Laboratório de Análise e Prevenção da Violência da UFSCar.
Saiba como agir se o que tira você do sério é...
Ataques de birra: Tentar controlar um escândalo é como tentar dominar uma tempestade. Não é possível e é uma forma de a criança dizer que está frustrada. Para evitar os ataques, prefira sair com seu filho quando ele estiver descansado e alimentado e leve um brinquedo para distraí-lo. Deixe-o ajudar nas compras e converse sobre o que está comprando – peça para ele falar o que acha de um determinado produto.
Desobediência: Há um período em que “não” torna-se a palavra preferida da criança. Mas ela experimenta os limites (seus e dela). Por isso, é importante a criança saber por que você considera o que ela acabou de fazer como errado e como poderia ter feito diferente. Uma alternativa é oferecer outra atividade, desviando a atenção da criança para algo mais interessante. Mas se a opção for o castigo, ela deve saber o que fez. Lembre-se: para quem tem de 3 a 7 anos, o castigo deve durar um minuto para cada ano de idade. No caso de uma criança em idade escolar, ela pode ficar um dia inteiro sem um brinquedo, por exemplo. Deixar o filho sem TV ou videogame não funciona com menores de 3 anos porque eles não associam o erro ao castigo. Na hora do mau comportamento, critique o comportamento e não a criança. Diga: “É feio fazer isso que você fez”, e não “que menina mais feia. Não faça mais isso”.
Brigas: Pontapés, tapas e socos podem virar uma alternativa para a criança quando ela não consegue se comunicar bem. Mesmo que bem pequena, verbalize que você está percebendo que ela está brava e que tem o direito de sentir-se assim (é muito importante para a criança, e os adultos também, que validemos seus sentimentos). Faça-o perceber que não é a raiva dele que você desaprova e sim a maneira como ele a demonstra.
Medos e mudanças de comportamento: Os pais precisam estar preparados para que uma criança de 6 anos, por exemplo, se arrependa de dormir na casa de um amigo e sinta saudade de casa. Muitas vezes, ela não tem os recursos internos para suportar uma decisão tomada. Também é comum que algumas crianças maiores voltem a se comportar como bebês, querendo colo, comida na boca, etc. Antes de repreendê-las procure a causa.
Fonte: Fundação Xuxa Meneghel, Rede Não Bata, Eduque e dicas de especialistas ouvidos na reportagem

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