domingo, 12 de fevereiro de 2012

Viagens, pessoas e o que aprendemos com o outro


O vôo estava lotado e eu, acomodada numa das últimas fileiras centrais, tinha pela frente uma noite insone. Não durmo sentada. Ainda mais nesses aviões cada vez mais apertados. Mas eis que as duas cadeiras ao lado estavam vazias. Sorte. Fui ao banheiro, na volta, encontrei a cadeira da outra extremidade ocupada por um senhor. Mal me sentei ele perguntou se eu ia tentar viajar ali.
-         Estou aqui mesmo. É o meu lugar.
-         Ah, este não é o meu, mas saí dali para minha mulher ficar mais bem acomodada. Ela está ali na frente (apontou para um lugar que eu não alcançava com os olhos), com muletas, sabe, e esses aviões são muito desconfortáveis.
-         Com certeza.
Algo naqueles olhos azuis de ar jovial destacados por cabelos brancos me fez esquecer que eu não ia mais poder deitar ali. Era o prenúncio de uma ótima conversa. E foi. Nem percebi o avião decolar sacudindo com mais força nós, os ocupantes das últimas fileiras.
Soube então que a mulher do meu companheiro de viagem tinha uma doença degenerativa sem cura. A síndrome, hereditária, cujo nome não me recordo agora, começou a se manifestar aos 40 anos. Comprometia o cerebelo e, portanto, toda a parte motora. Desde que se aposentou, há mais de 20 anos, o casal tinha optado por dar atenção à família e aproveitar a vida viajando e conhecendo lugares. Ele com 72, ela com 69, já tinham visto juntos o mundo todo. Orlando, pela facilidade de acesso e compras baratas, era o destino preferencial dessa fase com mais dificuldades. Os problemas em decorrência da doença estavam se intensificando, ele me contou, mas ela quis viajar.
Com o brilhante olhar azul encoberto por uma nuvem de tristeza, ele me confidenciou, baixinho. “Temo que seja nossa última viagem”. Uma máscara de oxigênio caiu automaticamente sobre o meu coração. Havia um quê de conformidade na constatação dele. “O jogo só acaba nos 45 do segundo tempo, não é? Isso se não tiver prorrogação”, eu disse, tentando me recuperar do inesperado da vida. Ele riu. “É verdade”. “Sem falar nos pênaltis”. Mudamos de assunto.
E seguimos falando sobre como é difícil sermos gratos por tudo que temos e vivemos até aqui, sobre como a filha, médica, tenta se virar para tomar conta do netinho dele, uma graça, de 4 anos, fala tudo, tão engraçado…uma história que conheço bem por experiência própria. Contou-me também sobre o outro filho, também médico, e tecemos ainda várias considerações sobre dor na coluna, torcicolo, pilates, compras nos Estados Unidos, morar em Brasília, sujeira nas ruas do nosso amado Rio…
Nossa conversa ocupou boa parte da noite em claro. Escolhi frango por sugestão dele. “É melhor do que a carne, vai por mim”. Eu fui.
Nos despedimos na saída do avião e nos encontramos novamente, sem querer, pelos corredores do enorme aeroporto. O casal aventureiro sorria, ele em pé, ela na cadeira de rodas para facilitar o deslocamento pelo interminável terminal de Miami. Tinham pela frente 17 dias de viagem. “Eu até chequei se meus filhos estavam com o visto americano em dia porque qualquer coisa…a gente não sabe…”, ele tinha me dito, durante o vôo. Mas quem é que sabe, quem é que sabe…
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Depois de outra noite em claro no avião, e uma “surra” de cinco horas mofando em Guarulhos à espera de minha conexão para Brasília, entrei como um zumbi no avião. Estava praticamente dormindo sentada, coisa rara, e minha cara deveria estar péssima. Mas não a ponto de afugentar uma conversa.
O cardápio de temas da conversa com meu novo vizinho de vôo foi variadíssimo. Primeiro ele guardou minha mala – pesadíssima para bagagem de mão – e depois não sei como eu já estava pegando com ele receitas de bolo para minha filha, alérgica a leite. Até a troca de dicas culinárias, eu já tinha tomado várias lições de vida, que começaram pela parte mais difícil.
Ao saber que eu retornava de um compromisso profissional em Miami, ele me disse que havia morado lá mais de um ano.
“É mesmo?”
“Sim, para tratamento de saúde do meu filho”
“Ah”
“Conheço Miami muito bem, mas não gosto de voltar lá. Acabei perdendo meu garoto”.
Um caco despencou do meu coração.
O filho tinha morrido em 1998, com 7 para 8 anos. Meus pensamentos tomaram conta de mim enquanto ele me falava, na verdade, sobre a solidariedade americana.
“Às vezes as pessoas falam que os americanos são muito frios, mas as demonstrações de solidariedade que recebi foram incríveis. Muito apoio. Inclusive, no dia que ele morreu, fecharam a rua do hospital, com sirenes”.
Sirenes soaram à distância nos meus ouvidos. Eu piscava com menos frequência, mas isso é um sinal de tristeza que só quem me conhece percebe. Ouvi, atenta. A conversa diversificou. Ficou alegre quase todo o tempo. Ele falava de tudo com certa naturalidade. Chamou minha atenção o momento em que ele mostrou a foto da família. Da mulher, linda, da filha de 23 anos e igualmente linda que estuda na Estônia, e do menino. “Esse é o meu garoto”. Tudo no tempo presente.
Filho é filho para sempre.
Eu não falei que também era mãe talvez para não deixar claro o quanto a dor dele doía em mim, mas acabei não resistindo e mostrei fotos das minhas crianças também. Ele ficou surpreso.
“Você está com saudade delas…”
“Muita, é sempre difícil viajar”
Ele sorriu, solidário. Disse que fica otimista toda vez que percebe as novas gerações valorizando a família que têm porque ele é exatamente assim. Família é tudo. E seguiu me contando sobre como é o relacionamento com a filha, da mulher com a filha, sobre suas expectativas, sobre ver o resultado da educação que deu, e falava com tanto orgulho de tudo que a tristeza se dissipou dentro de mim. Nos despedimos com um caloroso aperto de mão. Como ele adora cozinhar, disse que pesquisaria receitas para minha filha.
Eu não sei vocês, mas gosto de levar comigo um pouco da experiência alheia. Elas me tocam de uma forma arrebatadora, e eu tento não me esquecer de como esses simples relatos de vida podem fazer de mim uma pessoa melhor, de alguma maneira.
A esses dois homens, meu muito obrigada!
- Isabel Clemente.

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