sábado, 2 de junho de 2012

Legião Urbana, Wagner Moura e a solidão feliz

Pequenos momentos de prazer constroem um patrimônio emocional capaz de nos socorrer nos momentos difíceis.


Na madrugada de quarta-feira (30/05), um rapaz caminhava por uma grande avenida de São Paulo e cantava alto, sem medo de ser feliz: 
Ele queria sair para ver o mar
E as coisas que ele via na televisão
Juntou dinheiro para poder viajar
De escolha própria, escolheu a solidão
Sozinho, de peito estufado, sem nenhum sinal evidente de álcool ou drogas circulando nas veias, continuou cantarolando a letra quilométrica de Faroeste Caboclo até abrir a porta do carro, se acomodar no banco do motorista e sumir na cidade.

“Olha o cara”, disse para o meu marido. Ele respondeu: “Não cantaram a música que ele queria, o rapaz resolveu cantar sozinho. Faz muito bem”.
Tínhamos acabado de sair do show que se tornaria um dos principais assuntos da semana: o Tributo à Legião Urbana, com o ator Wagner Moura nos vocais. Foi uma apresentação tecnicamente medonha, mas a noite valeu cada centavo dos R$ 200 que deixei na bilheteria.
Nenhum produto da indústria cultural é só técnica. Assim como a medicina ou o jornalismo. É preciso levar isso em conta ao criar algo que possa ser percebido pelo público como irresistível. Não compramos os ingressos com a expectativa de ver um cantor profissional. Gastamos nosso dinheiro para participar de uma farra, de uma homenagem, de uma experiência emocional memorável. 
Não esperava que Wagner Moura fosse um médium, capaz de encarnar quem quer que fosse. Ele nunca prometeu isso. No palco, foi um representante. O representante da plateia. O representante de uma geração. Foi esse o mandato que, com nossa presença, demos a ele.  
Não duvido que houvesse entre nós pelo menos meia dúzia de fãs capazes de subir no palco e cantar melhor que ele. O ator não tem potência vocal e desafina horrores. Segundo palpiteiros especializados em música, não existe Pro Tools, Melodyne ou qualquer outra ferramenta de correção de afinação que melhore a qualidade do que ouvimos ali. Isso poderia arruinar a ideia dos organizadores de lançar o show, gravado ao vivo, em CD ou DVD.
Por uma razão simples: Wagner Moura foi perfeito no papel que esperávamos dele. Era um fã privilegiado. Um rapaz que conseguiu a proeza de subir ao palco com seus ídolos de juventude e conquistar a plateia com carisma e dedicação.  Por que, então, os oito mil espectadores não cobriram os artistas de palavrões que, pela ótica da técnica, seriam altamente justificáveis? Por que não saqueamos a lanchonete e lançamos sobre eles vários lotes de micropizzas de R$ 10? Por que não fomos às redes sociais denunciar o engodo e exigir nosso dinheiro de volta? 
A felicidade de Wagner era explícita e arrebatadora. Uma satisfação que escorregava do palco, ganhava corpo na primeira fila, deitava e rolava na segunda e na terceira até chegar, potencializada, à turma do fundão. 
Duvido que um cantor profissional ou apenas a dupla Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá fossem capazes de produzir na plateia a emoção que Wagner produziu.  
Sabe por quê? Porque, antes de tudo, ele era um solitário feliz. A felicidade era dele com ele. O mundo caindo, os músicos envergonhados, aquela multidão que poderia reagir mal e Wagner lá...feliz, feliz, feliz.

Tanta vontade, tanta entrega, tanta emoção fizeram a plateia reagir com condescendência e emoção em dobro. Os críticos disseram que foi emoção barata. E qual a diferença entre a cara e a barata? Só conheço uma: aquela que faz a vida parecer mais leve, ainda que momentaneamente.

Quando me perguntam o que é preciso fazer para aumentar a sensação de bem-estar e afastar o risco de depressão nesse mundo tão cheio de crueldade e intolerância, digo que não acredito em fórmula mágica. O que acho fundamental é saber valorizar os pequenos prazeres. É com esses micromomentos de prazer, agarrados aqui e acolá, que construímos um patrimônio emocional capaz de nos socorrer nos momentos difíceis.

Parece uma conversa vaga, com jeitão de autoajuda, mas há quem se dedique a estudá-la seriamente. É o caso, por exemplo, da professora de psicologia Barbara Fredrickson, da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Ela procura determinar cientificamente o valor dos momentos felizes que acumulamos na vida.

Barbara fez uma experiência com 86 voluntários e publicou os resultados na revista científica Emotion, publicada pela Associação Americana de Psicologia.

Quanto mais emoções positivas uma pessoa sentia a cada dia, mais acentuada era sua capacidade de se recuperar de situações difíceis ou estressantes, concluiu Barbara. "Pequenos momentos de prazer fazem florescer as emoções positivas. Elas nos tornam mais abertos", diz. "E essa abertura para o mundo nos ajuda a construir recursos que favorecem a recuperação diante da adversidade, nos mantém longe da depressão e nos permite continuar a crescer."

Segundo o estudo, ninguém precisa adotar uma postura de Polyana e negar as decepções que a vida nos reserva. Nem achar que a felicidade seja decorrente apenas dos momentos grandiosos. As emoções positivas que produziram mais benefícios durante a pesquisa não eram derivadas de eventos extraordinários. "É preciso valorizar os 'micromomentos' que podem produzir uma emoção positiva aqui ou ali", diz Barbara.

Na terça, quando Wagner disse que “aquela talvez fosse a noite mais emocionante da vida dele” estava cuidando desse patrimônio. Um patrimônio que, tenho certeza, aumentou notadamente naquela noite. Não só o dele.

Agradeço a Wagner, Dado, Bonfá e a todos os outros músicos por terem conduzido oito mil pessoas naquela noite (e mais oito mil na seguinte) a uma experiência única. Totalmente diferente da que pôde ser percebida por quem assistiu à transmissão pela TV.

Assisti a muitos shows na minha vida. Ótimos, ruins, mais ou menos. Nunca vivi nada parecido com o que aconteceu ali. Nunca vi a plateia inteira cantar todas as músicas, ajudar um vocalista limitado durante duas horas e, ao final do espetáculo, sair da casa pedindo mais.

Quando os portões se abriram, a multidão desceu as escadarias entoando a mesma letra e assim prosseguiu pela rua. O coro foi ficando mais fraco à medida que as pessoas se dispersavam nas portas dos estacionamentos. Até que só se ouvia a voz de um rapaz. O solitário feliz do início deste texto.

Só quem está muito bem consigo mesmo pode se relacionar bem e contribuir para a felicidade de quem está em volta. Isso não é egoísmo. É introspecção, solidão saudável.

Esse tipo de solidão nos liberta do medo do ridículo. Nos dá coragem. Acho que era mais ou menos o que Wagner sentia. Num momento do show, ele disse: “Entre as milhões de coisas que Renato me ensinou, umas das principais foi ter coragem. Poucas vezes vi um artista que se expunha tanto, que se colocava com tanta verdade, com tanta honestidade nas coisas que fazia”.

O público entendeu o enorme desafio que o ator assumiu e retribuiu com carinho. O que aconteceu ali não pode ser explicado apenas pelo saudosismo de quarentões e cinquentões presos ao passado. Havia ali gente de bem com a vida e de todas as idades.

O que fizemos foi viver aquela noite como se não houvesse outra. Uma chance única de celebrar o legado de uma das melhores bandas que o Brasil já teve. Celebrar os caras que serviram de guia e de voz para uma geração inteira – e que, pelo visto, ainda influenciam as que vieram depois. Quem estava lá, viveu. Quem não estava, perdeu.
É o tipo de coisa que não tem preço. A tão desejada Faroeste Caboclo só veio no segundo dia. 
Esse episódio me fez lembrar que a forma como cada pessoa encara os fatos mais simples da vida contribui (e muito) para sua condição de saúde mental.

Um jeito de encarar o que aconteceu nesta semana é acreditar que Wagner foi ridículo, os organizadores do tributo foram ridículos, a plateia que pagou R$ 200 para ver um show tecnicamente fraco foi ridícula, o mundo, como sempre, se revelou ridículo. Felizmente, há um outro jeito.

(Cristiane Segatto / Revista Época

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