sexta-feira, 1 de junho de 2012

Xuxa e a doença do coração de pedra


Todo médico é obrigado pelo Ministério da Saúde a notificar os casos de violência infantil que lhe chegam. No ano passado, foram registradas 14 mil agressões contra menores de dez anos. O abuso sexual somou 35% dos registros. Para um país com as condições sociais e a dimensão geográfica do Brasil, são números acanhados. Um sinal de que muita gente sofre em silêncio foi a reação popular ao depoimento de Xuxa ao Fantástico.
Em apenas dois dias, 220 mil denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes chegaram à Secretaria de Direitos Humanos. Muito mais que as 30 mil ligações feitas ao Disque Denúncia (Disque 100) nos primeiros quatro meses deste ano. Xuxa encorajou as vítimas a dar o primeiro passo. Agora, o Estado precisa ser capaz de acolhê-las, investigar o que dizem e, quando for o caso, punir os culpados.
Ao revelar sua história pessoal, Xuxa cutucou uma ferida nacional das mais vergonhosas. Mostrou também que parte da sociedade brasileira sofre de uma moléstia degenerativa e paralisante: a doença do coração de pedra.
A insensibilidade expressa aos borbotões nas redes sociais demonstra que só um desavisado ainda credita ao povo brasileiro qualidades gerais como caráter amigável e solidariedade. Se uma parte de nós ainda é assim, outra parte – coesa e ruidosa – é cruel, desumana, preconceituosa.
Tornou-se uma saída fácil atribuir todas as mazelas da sociedade brasileira à falta de educação. A economia melhorou, mas a sociedade só vai avançar quando o povo tiver acesso à educação. Preconceito se combate com educação. Ouvimos isso o tempo todo, não é mesmo?
Como se explica, então, que um rapaz com doutorado no Exterior se ocupe de distribuir nas redes sociais insultos contra Xuxa? Será que o problema dele é baixa instrução? Sendo ele um homem preocupado com as questões sociais, por que a denúncia de um crime cometido cotidianamente contra meninos e meninas não o sensibiliza? Se ele cultiva uma mente aberta, com neurônios capazes de juntar lé com cré, por que reage à revelação de Xuxa como o mais obtuso dos homens das cavernas?
Enxergo uma única explicação: preconceito. Contra a beleza, a riqueza e o sucesso. Se o mesmo depoimento, com as mesmas palavras, a mesma entonação, a mesma emoção saísse da boca de uma moça pobre e anônima provavelmente a reação do rapaz fosse outra.
Saudaria a coragem da vítima, ecoaria sua denúncia e culparia a hipocrisia da sociedade brasileira e a inépcia do governo. Sendo Xuxa a vítima, o que ela merece é o linchamento moral. Xuxa declarou ter sido abusada sexualmente até os 13 anos por alguns homens. Um professor, um amigo do pai, um homem que iria se casar com a avó dela. 
Qualquer pessoa que faça um relato dolorido e corajoso como Xuxa fez merece respeito. No mínimo. Não interessa se é rica, pobre, bonita, feia, criança, adulta, homem ou mulher. Não interessa se o abuso de fato ocorreu ou se é uma fantasia, uma suspeita . Quem declara o que Xuxa declarou lida com um sofrimento atroz.A cada novo abuso, ela se imaginava culpada. Talvez fosse atraente demais, desejável demais, talvez merecesse demais. É exatamente essa mensagem que, agora, os linchadores fazem questão de reforçar: se foi abusada é porque mereceu.
Os insensíveis não são capazes de perceber. Acham que ela não passa de uma imbecil. Uma mulher frívola que inventou uma história escabrosa para voltar à mídia no momento em que só lhe resta a decadência física e artística. Só um coração de pedra e uma mente cimentada são capazes de interpretar a realidade dessa maneira.
Xuxa chegou a um momento da vida em que mídia demais só atrapalha. Não precisa disso. A entrevista ao Fantástico foi jornalismo da melhor qualidade. Todo jornalista sabe como é difícil conduzir um entrevistado àquele nível de espontaneidade. Deixar um entrevistado se sentir à vontade daquele jeito e extrair dele o ouro mais bem guardado é uma qualidade que poucos jornalistas têm.
No domingo à noite, comia um sanduíche na sala de casa enquanto conversava sobre qualquer besteira com meu marido. A TV estava sintonizada no Fantástico, mas não estávamos prestando atenção. Quando Xuxa começou a falar, nós dois entramos, naturalmente, num silêncio profundo. Em respeito à dor daquela mulher e em respeito à excelência do colega que extraíra dela aquelas revelações.
Quem era o cérebro por trás daquela entrevista? Era o queríamos saber, assim que o quadro terminou. Foi uma grata surpresa saber que o autor foi o humorista Cláudio Manoel, do Casseta & Planeta. Quem não conhece o talento dele na condução de depoimentos precisa assistir ao filmeSimonal -- Ninguém Sabe o Duro que Dei, um excelente e revelador documentário dirigido por Cláudio e outros colegas.
Na entrevista, Xuxa abriu o coração como nunca e prestou um serviço ao Brasil. Os críticos afirmam que ela abusou de uma criança ao contracenar nua com um menino de 12 anos no filme Amor Estranho Amor. Julgar o passado de Xuxa sem levar em conta o contexto sócio-cultural da época é uma tremenda injustiça. O Brasil ainda não tinha o Estatuto da Criança e do Adolescente, um instrumento que hoje impediria que dois adolescentes atuassem numa pornochanchada.
Xuxa tinha 16 anos. O menino, 12. Quem abusou de quem? Eram duas crianças abusadas pelo mercado, pela família, pela sociedade, pelo sistema, pelo que queiram. Mas é sempre mais fácil culpar a mulher, não é mesmo? Principalmente se for bonita e depois tiver enriquecido.
Quem busca no youtube os vídeos antigos do Xou da Xuxa e se escandaliza com os shortinhos insinuantes que ela usava num programa infantil também precisa se lembrar do que eram aqueles tempos. Os anos 80 foram trash.
As roupinhas de Xuxa e de suas paquitas eram recatadas perto do que as crianças viam em outros programas. Cresci assistindo ao Cassino do Chacrinha. Aos sábados, às quatro da tarde, não perdia Rita Cadilac e suas companheiras. Elas faziam caras e bocas, giravam o dedinho e preenchiam a tela inteira da TV com bundas enormes, redondas e seminuas a cada intervalo. Perto delas, os shortinhos de Xuxa eram pueris.
Por muito tempo, o padrão de beleza da minha infância foi Gretchen. Fazíamos concursos para coroar quem melhor reproduzisse o rebolado e a sensualidade da nossa musa. Eu, que fazia aulas de balé clássico, fracassava a cada concurso.
A sensualidade transbordava dos programas vespertinos e ditava a moda popular. Os shortinhos que víamos na TV e nas ruas eram minúsculos. Tinham uma fenda nos quadris ajustada por barbantinhos de acordo com o gosto. Em comparação, o figurino de Suellen, a piriguete da novela das 8, parece ter saído do guarda-roupa recatado de uma juíza.
E os desfiles de Carnaval? Exalavam sexo. As cabrochas eram cercadas por passistas ávidos que giravam os pandeiros na altura dos quadris delas. Enquanto os raprazes lançavam olhares sedentos para a câmera de TV, colocavam a língua de fora, a um centímetro de lamber as curvas incomparáveis das mulatas cariocas.
Não vejo nada disso quando assisto pela TV aos desfiles de hoje. Não sei se o comportamento dos passistas mudou ou se a edição das transmissões mudou. Só indo ao sambódromo para conferir... Minha memória me obriga a reconhecer que hoje a TV está mais pudica. E não mais avacalhada como tanta gente gosta de repetir.
Se comparadas às chacretes, as dançarinas do Faustão são a expressão máxima da castidade. Concordo que a TV ainda exibe mais sexo e violência do que deveria. Concordo que é preciso proteger as crianças. Mas é preciso lembrar que a situação já foi bem pior. Dito isso, volto a afirmar que Xuxa não pode ser julgada fora do contexto em que viveu e brilhou.
Isso não significa que eu goste dos programas dela. Sempre achei o Xou da Xuxa uma atração emburrecedora. Tenho orgulho de ter conseguido manter minha filha desinteressada por coisas do tipo. Ainda assim, sou capaz de enxergar em Xuxa uma pessoa que merece meu respeito. O valor de uma pessoa não pode estar atrelado a seu valor como profissional.
Muitos leitores podem achar que sou uma jornalista ruim. Ou péssima. Ainda assim, talvez eu seja uma pessoa que merece atenção e tenha algum valor. O contrário também é verdadeiro. Existem profissionais competentíssimos que, para serem consideradas pessoas de valor, precisariam nascer de novo.
Xuxa faz um trabalho social. A entrevista dela tinha um objetivo. Chamar atenção para os abusos sexuais sofridos por crianças e adolescentes. Nessa tarefa, ela foi extremamente bem sucedida. Como em outras que são pouco conhecidas.
A Fundação Xuxa Meneghel mantém uma sede em Pedra de Guaratiba, no estado do Rio, uma das regiões com os mais baixos indicadores de desenvolvimento humano do país. Mais de 400 crianças e adolescentes são educados, tratados e conduzidos ali para uma vida melhor. A fundação também oferece oficinas e atividades educativas para a comunidade. Mais de 7 mil atendimentos foram realizados no ano passado. Apoia também projetos de proteção à infância em todas as regiões do país.
Não sabia que o trabalho de Xuxa ia além da sede de Guaratiba. Descobri nesta semana, durante uma cerimônia em Brasília. Tive a felicidade e a honra enorme de ser diplomada Jornalista Amiga da Criança, um título conferido pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI) aos profissionais que têm compromisso com a defesa dos direitos humanos. Lá, alguém mencionou um trabalho feito no Norte graças ao apoio da fundação de Xuxa.
Novamente, voltei a me perguntar por que ela merece tanto desprezo. Por que saudamos Bill Gates e sua digníssima esposa Melinda como beneméritos ao mesmo tempo em que achincalhamos o trabalho, as intenções e os sentimentos de Xuxa? Isso é insensibilidade, algo que não combina com o Brasil e com os brasileiros.
Antes de atirar a primeira ou a milionésima pedra, pense duas vezes. A próxima vítima pode ser você. Quando clamar por civilidade na internet é possível que ninguém mais conheça o significado da palavra. Por absoluta falta de uso.
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras Revista Época

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