domingo, 6 de novembro de 2011

Anticâncer

Eu estava em Pittsburgh há sete anos, tendo deixado a França há dez. Fazia meu internato em psiquiatria ao mesmo tempo em que continuava pesquisas começadas durante o doutorado de ciências. Com meu amigo Jonathan Cohen, dirigia um laboratório de imagens cerebrais funcionais para o qual obtivéramos o financiamento do National Institute of Health, o Instituto Nacional de Saúde americano. Nosso objetivo era compreender os mecanismos do pensamento observando o que se passava dentro do cérebro. Nunca poderia imaginar o que essas pesquisas iriam me fazer descobrir: minha própria doença.

Jonathan e eu éramos muito próximos. Ambos médicos que se especializavam em psiquiatria, juntos nos inscrevêramos no doutorado de ciências em Pittsburgh. Ele vinha do universo cosmopolita de São Francisco, eu de Paris via Montreal, e tínhamos nos encontrado de repente em Pittsburgh, no coração de uma América profunda, estrangeira tanto para um quanto para o outro. Alguns anos antes, publicáramos nossas pesquisas na prestigiosa revista Science, e depois – na Psychological Review – um artigo sobre o papel do córtex préfrontal, uma zona ainda pouco conhecida do cérebro que permite o elo entre o passado e o futuro. Apresentávamos uma nova teoria na psicologia, graças às nossas simulações do funcionamento cerebral em computador. Os artigos tinham causado um certo alvoroço, o que nos permitira, enquanto éramos simples estudantes, conseguir recursos e criar aquele laboratório de pesquisa.

Para Jonathan, se quiséssemos avançar nesse campo, as simulações em computador não bastavam mais. Precisávamos testar nossas teorias observando diretamente a atividade cerebral por intermédio de uma técnica de ponta, a imagem funcional por ressonância magnética (IRM). Na época, essa técni ca era balbuciante. Somente centros de pesquisa muito avançados possuíam aparelhos de ressonância magnética de alta precisão. Muito mais difundidos, os aparelhos RM de hospital eram também claramente menos efi cientes. Especificamente, ninguém tinha conseguido avaliar com um aparelho de hospital a atividade do córtex pré-frontal – o objeto de nossas pesquisas. De fato, ao contrário de outras regiões do cérebro cujas variações são muito fáceis de medir, o córtex pré-frontal não se ativa com muita intensidade. É preciso “empurrá-lo”, inventando tarefas complexas, para que ele se manifeste minimamente nas imagens IRM. Paralelamente, Doug, um jovem físico da nossa idade especialista em técnicas de IRM, teve a idéia de um novo método de gravação de imagens que talvez permitisse contornar a dificuldade. O hospital onde trabalhávamos concordou em nos emprestar seu aparelho RM à noite, entre oito e onze horas, uma vez terminadas as consultas. E nós começamos a testar a nova abordagem.

Doug, o físico, modificava continuamente seu método, enquanto Jonathan e eu inventávamos tarefas mentais para estimular ao máximo essa zona do cérebro. Após vários fracassos, conseguimos perceber em nossas telas a ativação do famoso córtex pré-frontal. Foi um momento excepcional, o resultado de uma fase de pesquisa intensa, tornada mais emocionante ainda pelo fato de ter sido vivida entre colegas.

Nós éramos um pouco arrogantes, eu devo confessar. Estávamos com 30 anos, acabáramos de concluir nossos doutorados, já tínhamos um laboratório. Com nossa nova teoria que interessava a todo mundo, éramos estrelas em ascensão na psiquiatria americana. Dominávamos tecnologias de ponta que ninguém praticava. As simulações em computador das redes de neurônios e as imagens cerebrais funcionais por IRM ainda eram quase desconhecidas dos psiquiatras universitários. Naquele ano, Jonathan e eu chegamos até a ser convidados pelo professor Widlöcher, o luminar da psiquiatria francesa da época, para fazer um seminário no Pitié-Salpêtrière, o hospital parisiense onde Freud estudou com Charcot. Durante dois dias, diante de um público de psiquiatras e neurocientistas franceses, nós explicamos como a simulação das redes de neurônios em computador podia ajudar na compreensão dos mecanismos psicológicos e patológicos. Aos 30 anos, havia razão para sentir orgulho.

A vida antes do câncer era o quê? Eu era um entusiasmado com a vida, um tipo de vida que agora me parece um tanto estranho: eu estava cheio da certeza do sucesso, confiante em uma ciência sem concessões, e não sentia muita atração pelo contato com os pacientes. Como trabalhava ao mesmo tempo com o internato de psiquiatria e o laboratório de pesquisa, tentava fazer o me nos possível na área clínica. Eu me lembro de um pedido que me fi zeram, para que me inscrevesse em um certo estágio. Como a maior parte dos internos, não me sentia muito animado: a carga de trabalho era muito pesada, e além do mais não era de psiquiatria propriamente dita. Tratava-se de passar seis meses em um hospital geral, tratando de problemas psicológicos de doentes hospitalizados por problemas físicos – gente que tinha sido operada, passado por um transplante hepático, que sofria de câncer, de lúpus, de esclerose múltipla… Eu não tinha nenhuma vontade de fazer um estágio que ia me impedir de dirigir o laboratório, e, além disso, toda aquela gente sofrendo, não era exatamente o que me interessava. Queria sobretudo fazer pesquisa, escrever artigos, participar de congressos e difundir minhas idéias. Um ano antes, eu tinha ido para o Iraque com os Médicos sem Fronteiras. Fui confrontado com o horror e gostei de aliviar o sofrimento de tantas pessoas, dia após dia. Mas a experiência não me deu vontade de continuar no mesmo caminho, uma vez de volta ao hospital em Pittsburgh. Era como se houvesse dois mundos diferentes e fechados um ao outro. Eu era antes de tudo jovem e ambicioso – ainda sou um pouco…

O lugar que o trabalho ocupava na minha vida tinha, aliás, desempenhado um papel importante no divórcio penoso do qual eu emergia naquele momento. Entre outras causas de desacordo, minha mulher não tinha suportado, por causa de sua carreira, o fato de eu querer continuar morando em Pittsburgh. Ela queria voltar para a França, ou pelo menos ir morar em uma cidade mais fun, como Nova York. Para mim, ao contrário, tudo estava se acelerando em Pittsburgh e eu não queria deixar meu laboratório e meus colaboradores. Tudo terminou diante do juiz, e durante um ano eu vivi sozinho na minha minúscula casa, entre um quarto e um escritório.

E então, num dia em que o hospital estava quase deserto – era entre o Natal e o ano-novo, a semana mais vazia dos Estados Unidos -, eu vi aquela jovem no refeitório lendo Baudelaire. Alguém que lê Baudelaire na hora do almoço é um espetáculo raro nos Estados Unidos, e ainda mais em Pittsburgh. Eu sentei na mesa dela. Ela era russa, tinha as maçãs do rosto protuberantes e grandes olhos negros, um ar ao mesmo tempo reservado e extremamente perspicaz. Às vezes ela parava completamente de falar, eu ficava desconcertado. Eu perguntei por que fazia aquilo e ela me respondeu: “Estou verificando interiormente a sinceridade do que você acabou de dizer.” Aquilo me fez rir. Eu estava gostando bastante daquela maneira de me colocar no meu lugar. Foi assim que nós começamos uma história que levou tempo para se desenvolver. Eu não tinha pressa, ela também não.

Seis meses mais tarde, fui trabalhar durante todo o verão na universidade de São Francisco em um laboratório de psicofarmacologia. O dono do labora tório estava em vias de se aposentar e gostaria que eu fosse seu sucessor. Eu me lembro de ter dito a Anna que se eu encontrasse alguém em São Francisco, talvez fosse o fim de nosso relacionamento. Que eu compreenderia perfeitamente se ela fizesse o mesmo por seu lado. Acredito que ela tenha lamentado, mas eu queria ser absolutamente franco. Ela não morava comigo, nosso relacionamento era agradável, mas não passava disso. Mesmo assim, eu dei de presente a ela um cachorro antes de partir… Havia entre nós uma certa ternura. Uma ternura e uma distância.

Mas, quando eu voltei em setembro para Pittsburgh, ela veio morar na minha casa de boneca. Eu sentia que alguma coisa entre nós estava crescendo, o que me deixava contente. Não sabia bem aonde aquela história iria me levar e continuava me mantendo na defensiva – não esquecera meu divórcio. Mas minha vida estava caminhando bem. Eu me sentia feliz com Anna. No mês de outubro, nós tivemos duas semanas mágicas. O verão tinha voltado. Naquele momento, eu olhei para ela e compreendi que estava apaixonado.

E depois tudo mudou inesperadamente.

Eu me lembro da gloriosa noite de outubro em Pittsburgh. De moto pelas avenidas ladeadas de flamboyants em direção ao centro de IRM, eu ia me encontrar com Jonathan e Doug para uma de nossas sessões de experiências com os estudantes que nos serviam de “cobaias”. Eles entravam no aparelho e nós lhes pedíamos para fazer tarefas mentais por um salário mínimo. Nossas pesquisas os animavam, e sobretudo a perspectiva de receber no final da sessão uma imagem numérica de seus cérebros, que eles corriam para exibir em seus computadores. O primeiro estudante veio por volta das oito horas. O segundo, previsto para nove ou dez horas, não apareceu. Jonathan e Doug me perguntaram se eu não queria me fazer de cobaia. Claro que eu aceitei, eu era o menos técnico dos três. Me deitei dentro do aparelho, um tubo extremamente apertado onde se fi ca com os braços colados no corpo, um pouco como em um caixão. Muita gente não suporta os aparelhos de ressonância magnética: 10% a 15% dos pacientes são excessivamente claustrofóbicos e não conseguem fazer IRM.

Eu estava dentro do aparelho e começamos como sempre por uma série de imagens cujo objetivo é destacar a estrutura do cérebro da pessoa examinada. Os cérebros, como os rostos, são todos diferentes. É preciso portanto, antes de qualquer avaliação, fazer uma espécie de cartografia do cérebro em repouso (o que se chama de imagem anatômica), com a qual serão comparadas as vistas tomadas no momento em que o paciente estiver executando atividades mentais (nós as chamamos de imagens funcionais). Durante todo o processo, batendo em um assoalho de madeira, correspondente aos movimentos do ímã eletrônico que se engata e desengata muito depressa para induzir variações do campo magnético no cérebro. O ritmo dessas batidas varia, caso essas imagens sejam anatômicas ou funcionais. Pelo que eu conseguia ouvir, Jonathan e Doug estavam fazendo imagens anatômicas do meu cérebro.

Ao final de uns dez minutos, a fase anatômica terminou. Eu esperava ver aparecer em um pequeno espelho colado bem em cima dos meus olhos a “tarefa mental” programada por nós a fim de estimular a atividade do córtex pré-frontal – era o objetivo da experiência. É para apertar um botão cada vez que se identifiquem letras idênticas dentre as que desfi lam rapidamente na tela (o córtex pré-frontal permite memorizar as letras que desapareceram e fazer as operações de comparação). Aguardo, pois, que Jonathan envie a tarefa e que se desencadeie o ruído próprio do aparelho registrando a atividade funcional do cérebro. Mas a pausa se prolonga. Não compreendo o que está acontecendo. Jonathan e Doug estão ao lado, na sala de controle, só se pode falar para lá por interfone. Então eu ouço nos fones de ouvido: “David, há um problema. Há alguma coisa errada com as imagens. Vamos ter que recomeçar.” Tudo bem. Recomeçamos. Fazemos outra vez dez minutos de imagens anatômicas. Chega o momento em que a tarefa mental devia começar. Eu aguardo. A voz de Jonathan me diz: “Não vai dar para fazer. Temos um problema. Espere um pouco.” Eles vêm para a sala do aparelho e fazem deslizar a mesa sobre a qual eu estou deitado, e eu vejo, ao sair do tubo, que eles estão com uma expressão estranha. Jonathan coloca uma mão sobre o meu braço e me diz: “Não podemos fazer a experiência. Tem um negócio no seu cérebro.” Eu peço que me mostrem na tela as imagens que eles gravaram por duas vezes no computador.

Eu não era nem radiologista nem neurologista, mas tinha visto muitas imagens de cérebro, era nosso trabalho cotidiano: havia, sem nenhuma ambigüidade, na região do córtex pré-frontal direito, uma bola redonda do tamanho de uma noz. Pela sua localização, não se tratava de um desses tumores benignos do cérebro que se vêem por vezes, operáveis, ou que não estão entre os mais virulentos – como os meningiomas, os adenomas da hipófise. Às vezes, trata-se de um cisto, de um abscesso infeccioso, provocado por certas doenças como a aids. Mas minha saúde era excelente, eu fazia muito esporte, chegava até a ser capitão do meu time de squash. Essa hipótese estava, pois, descartada. Impossível me iludir sobre a gravidade do que acabáramos de descobrir. Em estágio avançado, um câncer no cérebro sem tratamento geralmente mata em seis semanas; com tratamento, em seis meses. Eu não sabia em que estágio me encontrava, mas conhecia as estatísticas. Permanecemos os três silenciosos, não sabendo o que dizer. Jonathan mandou os filmes para o departamento de radiologia a fim de que fossem avaliados logo no dia seguinte por um especialista, e nós nos despedimos.

Fui embora na minha moto, em direção à minha casinha na outra ponta da cidade. Eram 11 horas, a lua estava muito bonita num céu luminoso. No quarto, Anna dormia. Eu me deitei e olhei para o teto. Era de fato muito estranho que a minha vida acabasse daquele jeito. Era inconcebível. Havia um tal fosso entre o que eu acabara de descobrir e o que eu construíra durante tantos anos, a disposição que eu acumulara para o que prometia ser um percurso longo e que devia resultar em realizações cheias de sentido. Tinha a impressão de estar só começando a contribuir com coisas úteis. Eu emergia de um período muito duro. O doutorado tinha sido especialmente trabalhoso. Meu casamento só durara três meses. Há sete anos eu vivia em uma cidade que não tinha nada de atraente. Com 22 anos, tinha deixado a França pelo Canadá e depois pelos Estados Unidos. Tinha feito tantos sacrifícios, investido tanto no futuro! E, de repente, me via diante da possibilidade de não haver futuro nenhum.

E, além do mais, estava sozinho. Meus irmãos estudaram um tempo em Pittsburgh, mas já tinham ido embora. Não tinha mais mulher. Minha relação com Anna era muito recente, e ela iria certamente me deixar: quem quer saber de um tipo que aos 31 anos está condenado à morte? Eu me via como um pedaço de madeira boiando dentro de um rio e que subitamente encalha na margem, preso. O destino dele era contudo fazer todo o caminho até o oceano. Ficara preso naquele lugar, ao acaso, onde não tinha verdadeiros elos. Eu ia morrer sozinho em Pittsburgh.

Lembro-me de um acontecimento extraordinário que se produziu enquanto eu estava deitado na cama contemplando a fumaça do meu cigarro indiano. Na verdade, eu não estava com vontade de dormir. Estava imerso nos meus pensamentos quando, de repente, ouvi minha própria voz falando na minha cabeça, com uma suavidade, uma segurança, uma convicção, uma clareza, uma certeza que eu não conhecia. Não era eu, e contudo era de fato a minha voz. No momento em que eu repetia a mim mesmo que “não é possível que isto tenha acontecido a mim, é impossível”, a voz disse: “Sabe de uma coisa, David? É perfeitamente possível, e não é assim tão grave.” E então se passou algo extraordinário e incompreensível, pois, naquele segundo, deixei de ficar paralisado. Era uma evidência: sim, era possível, faz parte da experiência humana, muitas outras pessoas a viveram antes de mim, eu não era diferente. Não era grave ser simplesmente humano, plenamente humano. Meu cérebro encontrara sozinho a via da tranqüilidade. Depois, quando tive medo novamente, tive que aprender a controlar minhas emoções. Mas naquela noite eu adormeci e no dia seguinte pude trabalhar e fazer o necessário para começar a enfrentar a doença, e encarar a minha vida.

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